sexta-feira, 25 de julho de 2008

Materiais para a reflexão sobre o ensino de geografia no território brasileiro

Ricardo Mendes Antas Jr. (UNIFIEO)

Eliza Almeida (UFAL)

Segundo o Censo da Educação Básica de 2005 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o território brasileiro tem um total de 126.074 profissionais do magistério ministrando a disciplina de Geografia no ensino fundamental II e ensino médio. Destes, apenas 24.335 são graduados em Geografia. Entre os profissionais que não tem diploma de geografia, mas que atuam como professores da área temos: Pedagogia com 14.745; História com 13.308; Estudos Sociais e Letras somam 11.188. Existem ainda 26.007 que não informaram a área ou o nível de formação. Além desse desequilíbrio (que não se verifica com tamanha discrepância para as outras disciplinas) chama especial atenção que 29.754 não têm o curso superior, ou seja, um volume superior ao de profissionais formados na disciplina.

Estes dados, quando observados nas grandes regiões, revelam situações ainda mais alarmantes. A título de exemplo, pode-se mencionar que dos 51.764 professores de Geografia no nordeste apenas 15% têm formação na área e 34,7% não têm curso superior. No sudeste, dos 35.824 apenas 25% são formados na área e 11% não têm formação em ensino superior.

O objetivo dos autores neste estudo é discutir as conseqüências desses números para o ensino de Geografia no Brasil, bem como trazer algumas reflexões sobre as implicações futuras na carreira de Geografia e na formação dos futuros geógrafos, pois estes dados são reveladores da permanente crise institucional que a Geografia brasileira parece não conseguir se desvencilhar. A espacialização destes dados colabora ainda mais para a percepção do quadro dramático que atravessa o ensino de geografia no território brasileiro:


(clique na imagem para ampliar)

(clique na imagem para ampliar)

(clique na imagem para ampliar)

(clique na imagem para ampliar)

(clique na imagem para ampliar)

Não se pretende explorar exaustivamente os números do censo e tampouco acreditamos que esse caminho seja uma via única para a realização de análises críticas, mas a situação a que se chegou na Geografia tem nos números o reflexo do tamanho da crise e pode e deve servir como base para os geógrafos se unirem em torno de políticas comuns para a revalorização que esse campo de conhecimento merece.

Segundo Susan W. HARDWICK, em seu texto “O ensino de geografia nos Estados Unidos”, em “O ensino de geografia no século XXI” organizado por José William VESENTINI (Ed. Papirus, 2005), foi necessário um grande movimento entre os profissionais da área durante toda a década de 1990 nos Estados Unidos para reerguer a disciplina que estava em plena decadência, tanto entre alunos como também frente às demais disciplinas das ciências sociais e também das ciências da terra.

Aqui entre nós também é perceptível como esse fenômeno já está instaurado. Nas escolas, os alunos vêm tendo muito pouco contato com a disciplina, e muito disto se pode explicar pelos números apresentados no Censo da Educação Básica acima citado. Muitas vezes a Geografia é substituída por um apanhado de atualidades escolhidas ao acaso, e a construção do conhecimento geográfico em sala de aula simplesmente não se dá, posto que não há um método disciplinar específico (no melhor dos casos, há um método pedagógico, que em nosso entender não substitui o método geográfico, ainda que o complemente).

O livro didático, que já foi bastante considerado como o vilão no sistema de aprendizagem no passado, hoje garante, no caso da Geografia, um mínimo de aprendizado específico e até pode gerar algum gosto pela ciência. Isto ocorre porque, consideradas as más condições de ensino público e do ensino privado, o professor não formado na área (ou não formado em área alguma) tem no livro-texto um guia para conduzir as aulas. Mas evidentemente não estamos aqui para justificar esse instrumento, e, sim, para afirmar quão necessário ele se tornou em função da crise institucional avassaladora em que a Geografia brasileira está imersa.

Outro ponto não menos importante é o que já vimos verificando há pelo menos uma década: o gosto e o interesse pela disciplina vêm caindo francamente, e o preparo específico para a formação de geógrafo é quase nulo. Isto fica patente quando tomamos como parâmetro os alunos e professores das faculdades de ciências sociais e humanas: a Geografia aparece como uma ciência pouco conhecida nos seus avanços atuais.

Tem-se pouca clareza sobre os avanços da Geografia desde a década de 1970, a sua ruptura epistemológica, a incorporação do marxismo e a explosão interna em diversas correntes autodenominadas críticas, com tendências distintas em função da incorporação de filósofos e historiadores, entre outros que inspiraram a transformação da geografia e colaboraram para isso.

Entendemos que esses fatos comuns são de responsabilidade do geógrafo, isto é, nós estamos há mais de duas décadas debatendo a ciência muito internamente e não estabelecemos uma agenda propositiva para a nossa área – e nas raras ocasiões em que o fazemos, não estamos sendo devidamente reconhecidos.

Contraditoriamente ao fato de haver tão grande número de não formados dando aulas de Geografia, assistimos ao fechamento de cursos de Geografia, especialmente nas instituições particulares, ao mesmo tempo em que a abertura de novos departamentos de Geografia nas universidades públicas no período presente não se dá no mesmo ritmo que os das demais ciências humanas. Esta é uma luta política que, em nosso entendimento, a AGB - Associação dos Geógrafos Brasileiros deve ter como prioridade junto às instâncias governamentais. Devemos, de um lado, demonstrar essa carência e, de outro lado, como a qualidade do ensino de geografia não deixa de ser uma prioridade para um Estado forte e soberano.

Acreditamos que a Geografia brasileira conduzida pela Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB) deve se debruçar sobre essa questão e propor uma política de mudança do cenário atual. Os avanços acadêmicos têm que criar uma diversidade maior de canais para transformar radicalmente a realidade do ensino fundamental de Geografia.

* Publicado nos anais do XV Encontro Nacional de Geógrafos, julho de 2008.

Esses são dados e elaborações preliminares e uma versão ampliada e mais minuciosa está sendo elaborada para ser apresentada no próximo encontro da ANPEGE que terá lugar em Montevidéu, em 2009.






quarta-feira, 21 de maio de 2008

Ciência e Cultura
ISSN 0009-6725 versão impressa


Cienc. Cult. v.56 n.3 São Paulo jul./set. 2004

carregue o artigo em formato PDF


GEOPOLÍTICA

Os diferentes muros sociais que se erguem no mundo contemporâneo

As cidades muradas da Idade Média eram constituídas para proteger suas comunidades do invasor, da barbárie. Os muros de nossa história contemporânea – construídos por Israel na Cisjordânia, no lado leste da Palestina e pelos Estados Unidos, na fronteira com o México – por trás de uma função comum, que é "tentar impedir, de modo absoluto, a transposição, pela população, da fronteira entre duas unidades políticas distintas", diferenciam-se do seu congênere mais famoso de nosso passado recente, o muro de Berlim. Na análise dos geógrafos Ricardo Castillo (da Unicamp) e Ricardo Mendes Antas Junior (da Unifieo), apesar das conseqüências trágicas, o muro de Berlim derivou-se de um período histórico de equilíbrio político – a Guerra Fria – entre duas potências: os EUA e a União Soviética. Já os atuais, em território palestino e mexicano, representam a exacerbação do poder, "a tirania de poderes desmedidos e sem peias".

As fronteiras, obsoletas no conceito popular da globalização, estão longe de acabar, mas passam por uma profunda reformulação, avaliam os pesquisadores. "Conforme várias vezes afirmou o geógrafo Milton Santos – pensador atual que melhor refletiu sobre o tema – da mesma forma que as fronteiras podem ser um instrumento de coação e controle, também se apresentam como instrumento de proteção e de emancipação das sociedades nacionais", afirmam.

Pouco comentado, o "muro do México" (ou "muro do Império", como preferem alguns) que separa este país dos Estados Unidos, vai da praia de Tijuana, no Oceano Pacífico, e se estende sem interrupção por toda a fronteira entre os dois países até chegar no rio Grande. Começa a 150 metros mar adentro, como uma armação de 8 metros de altura de barras de aço e concreto, e se transforma numa linha de alambrados, paredes de concreto ou marcas de pedra. Alguns pontos estratégicos são vigiados com rigor, usando-se de câmeras, luzes e sensores eletrônicos, controlados pela polícia de fronteira.

Estudos da Universidade de Houston mostram que de 1994 até hoje morreram mais de 2,2 mil pessoas tentando atravessar a fronteira. O ano de 1994 marca a criação da Operation Gatekeeper, na Califórnia, especializada na vigilância da fronteira. Até aquele ano, o número de mortes vinha diminuindo, mas passa a crescer em 1995. Um aumento significativo é registrado entre os anos de 1999 e 2000, pulando de 250 para mais de 350 mortes por ano. Em quase 30 anos de história, morreram entre 800 e 1 mil pessoas tentando atravessar o muro de Berlim.

Para Castillo e Antas, o muro entre o México e os Estados Unidos é apenas a evidência concreta que separa o mundo subdesenvolvido do desenvolvido de modo geral. "É o caso mais grave, pois esse muro é uma absolutização de uma das maiores contradições do período atual: a maior concentração de riquezas já havida na história. O fato é que há, também, um "muro" entre Brasil e Estados Unidos. E entre nós e a Inglaterra, a França, a Alemanha etc". Para eles, enquanto a circulação de mercadorias, capitais, informações e fluxos financeiros fica liberada no contexto atual, a dos homens é cada vez mais restringida.

MURO ÉTNICO Já o muro localizado no Oriente Médio, que adentra territórios palestinos ocupados por Israel teria outra natureza. "Esse é um muro étnico, da recusa de integração entre povos, da recusa da paz", dizem os pesquisadores. Alegando questões de segurança, o governo de Israel está construindo uma barreira de mais de 700 km na Cisjordânia.

Com exceção do governo norte-americano, as principais lideranças internacionais têm condenado, com alguma veemência, Israel pela construção do muro. A fronteira que ele estabelece vai além da chamada "linha verde", marco internacionalmente reconhecido como limite de Israel. Em artigo intitulado "Muro, humilhação e roubo", o lingüista e ativista político americano de origem judaica Noam Chomsky questiona os argumentos de segurança para sua construção. "O que o muro realmente faz é tomar terras palestinas", afirma. Segundo ele, a área que Israel está tomando para si possui os melhores recursos naturais da região. Os colonos israelenses instalados nesse território terão garantido o direito de uso da terra; já os palestinos precisarão reivindicar o direito de "viverem em suas próprias casas", afirma Chomsky. Após a pressão internacional, Israel anunciou que alterará o desenho atual do muro, aproximando-o – mas não o igualando – da "linha verde".

Rafael Evangelista


© 2004 Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

Universidade Estadual de Campinas
Labjor - Reitoria V - 3º Piso
CEP: 13083 - 970 Campinas SP Brasil
Tels: (19) 3289 3120 / 3788 7165
Fax: (19) 3788 7857

21/05/2008
Petróleo: o poder mudou de lado

Jean-Michel Bezat

No início dos anos 1970, quando o barril de "ouro negro" valia menos de US$ 2, ninguém jamais iria imaginar que um presidente americano se encontraria um dia na situação de ser obrigado a implorar perante o rei da Arábia Saudita por um aumento da produção da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), com o objetivo de forçar uma redução dos preços. O Ocidente, entretanto, chegou a este ponto. Depois de esbarrar numa primeira recusa grosseira, em meados de janeiro, George W. Bush voltou a insistir neste pedido, na sexta-feira (16/05), por ocasião do seu encontro em Riad com o rei Abdala. A tentativa fracassou mais uma vez, pois tudo o que o presidente americano conseguiu foi um aumento limitado e temporário.

Já vai longe a época em que a Standard Oil of New Jersey, a Anglo-Persian, a Gulf Oil e suas quatro outras "irmãs" dominavam o mercado mundial. O tempo em que o presidente Roosevelt conseguiu obter do então rei Ibn Saud a abertura dos poços sauditas para as companhias estrangeiras em troca da proteção militar americana (1945). A época em que era possível derrubar impunemente o primeiro-ministro iraniano Mossadegh (1953), culpado de ter nacionalizado os hidrocarbonetos. O tempo em que fingiam acreditar que o petróleo era uma riqueza inesgotável.

O poder de mercado mudou de lado. Ele escapou dos países consumidores e das grandes multinacionais do setor (Exxon, Chevron, Shell, BP. . .). A evolução do preço de referência do barril (que se aproxima atualmente de US$ 130) está sendo decidida nos bastidores do Kremlin e nas obscuras ante-salas do poder iraniano, no meio dos manguezais nigerianos e nas ribanceiras do Orenoco venezuelano, nos corredores vienenses da Opep e nas agitadas salas da New York Mercantile Exchange (NYMEX, a bolsa especializada na energia e nos metais). E, sobretudo, nos palácios sauditas.

O mundo está vivendo um terceiro choque do petróleo - mais lento do que os anteriores, de 1973 e de 1980. O preço do barril, cujo montante foi multiplicado por seis no espaço de seis anos, é hoje mais elevado em dólares constantes do que era no início de 1981. O seu preço poderá eventualmente refluir de dez ou vinte dólares dentro dos próximos meses, mas nada é menos certo. Alguns analistas tão influentes como os do banco de negócios Goldman Sachs prevêem a manutenção da sua cotação em US$ 141 em média no decorrer do segundo semestre, e em US$ 148 em 2009. A OPEP, por sua vez, não exclui mais que ele venha a alcançar US$ 200. . .

A Arábia Saudita, o único país capaz de liberar a injeção de um milhão de barris suplementares no mercado, está relutando a proceder desta forma. Ele até mesmo modificou a orientação do seu discurso, recentemente, anunciando que iria limitar o teto da sua produção cotidiana a 12,5 milhões de barris entre 2009 e 2020, de maneira a preservar as suas reservas e, junto com elas, os interesses das gerações futuras. "Toda vez que vocês descobrirem novas jazidas, deixem-nas no solo, pois os nossos filhos delas irão precisar", decidiu o rei.

Nada consegue convencer os sauditas a abrirem as comportas. Eles avaliam que o mercado está suficientemente abastecido e que os estoques de petróleo bruto e de gasolina se mantêm em níveis satisfatórios. Eles estão preocupados, acima de tudo, com a política energética dos Estados Unidos, que visa a reduzir a sua "dependência petroleira" em relação ao Oriente Médio - uma palavra de ordem que foi lançada pelo presidente Bush e retomada em coro pelos pré-candidatos à eleição presidencial John McCain e Barack Obama. Basta ouvir os inflamados discursos acusatórios do ministro saudita da energia contra os biocombustíveis que vêm sendo desenvolvidos no continente americano, para compreender os interesses que estão em jogo. A isso, deve ser acrescentada a vontade de alguns parlamentares americanos de submeter o mercado petroleiro às regras anticartéis do comércio internacional, e até mesmo de suspender as vendas de armas se Riad continuar se recusando a aumentar a sua produção de petróleo.

Essas iniciativas preocupam e irritam os dirigentes da Opep. A estratégia do cartel de Viena, que renunciou desde 2003 a determinar um valor máximo e outro mínimo para o preço do petróleo, parece simples: seguir abastecendo o mercado para evitar toda ruptura, reduzir o "colchão de segurança" ao mínimo (2 milhões de barris por dia) e manter desta forma os preços tão elevados quanto possível, sem comprometer o crescimento econômico. Por serem proprietários dos três quartos das reservas mundiais, os treze Estados membros da Opep detêm todo o poder de barganha necessário para imporem a política que eles bem entendem.

Explosão dos preços
A dependência dos países consumidores está vinculada à fragilidade das multinacionais. Os Estados petrolíferos e as suas companhias públicas nacionais compartilham entre si 85% das reservas mundiais. Com isso, os gigantes multinacionais hoje não detêm mais do que 15% dessas reservas e enfrentam problemas para reconstituí-las à medida que elas vão extraindo a matéria-prima.

Qual será o peso real do "gigante" ExxonMobil, a maior companhia cotada, se comparado com a Gazprom ou a Saudi Aramco? O acesso das grandes companhias ocidentais aos campos petrolíferos - após se verem "barrados" na Arábia Saudita, no Kuwait e no México, a sua penetração está cada vez mais difícil na Rússia, na Venezuela e na Argélia - implicaria "no retorno ao período anterior ao das nacionalizações realizadas nos anos 1970", avalia Nicolas Sarkis, o diretor da revista especializada "Pétrole et gaz arabes".

Será preciso travar uma guerra para reconquistar o precioso líquido? Esta opção é inimaginável, mesmo se a necessidade de petróleo veio a ser um dos motivos da invasão americana do Iraque em 2003, conforme reconheceu o antigo presidente do Fed (o banco central americano), Alan Greenspan. Além disso, esta guerra permitiria obter qual benefício? Ao atiçar as tensões no Oriente Médio e ao reduzir a oferta, a guerra no Iraque contribuiu para a explosão dos preços. A luta para tomar posse dessas reservas por meio da força não passaria de "uma batalha de retaguarda", uma vez que os países petroleiros se encontram atualmente "numa posição de força", comenta Nicolas Sarkis. Eles podem vender as suas enormes reservas em dólares e impedir que os beligerantes do petróleo dele se apoderem, oferecendo-as a países mais pacíficos. Antes para a China do que para a América!

Um bom número de países industrializados tirou as lições das crises de 1973 e 1980 e optou por reduzir a sua dependência. Hoje, eles precisam de menos "ouro negro" para criarem a mesma riqueza. Nos Estados Unidos, as administrações sucessivas tomaram decisões que foram na contramão desta tendência, valendo-se de argumentos do tipo: "O modo de vida americano não é negociável". Por conta disso, a sua taxa de dependência em relação ao petróleo importado acabou passando de 60% para 80%.

Neste exato momento, o problema é de natureza geopolítica: o acesso ao recurso petroleiro está minguando. Num futuro próximo, ele passará a ser geológico. Nas reservas conhecidas, hoje sobra o equivalente a 1,2 trilhão de barris de petróleo, ou seja, o suficiente para quarenta anos de consumo mundial, seguindo-se o ritmo de extração atual. Os mais otimistas multiplicam este número por três, acrescentando os tipos de petróleo bruto chamados de "não-convencionais" (óleos pesados, areias betuminosas). Infelizmente, a extração destes últimos é muito mais cara. Enquanto isso, as reservas dos campos vêm diminuindo inexoravelmente na Arábia Saudita, na Rússia, na Noruega, no México, na Indonésia...

A única resposta prática reside numa diminuição do consumo. Ora, a explosão dos preços não resultou numa redução da demanda, a não ser de maneira marginal, uma vez que os transportes funcionam, numa proporção de 97%, apenas por meio dos derivados do petróleo bruto. Contudo, a redução do consumo nunca foi tão vital, seja para reforçar a segurança energética, seja para lutar contra o aquecimento climático.

O mais barato e o mais limpo de todos os tipos de petróleo continua sendo aquele que não é queimado

quinta-feira, 8 de maio de 2008

O capitalismo global e as lições do caso Enron

Documentário sobre a derrocada de uma das maiores empresas dos EUA, que pulverizou a poupança e a aposentadoria de milhares de pessoas mostra que não se tratou de um caso isolado. Executivos da empresa levaram às últimas conseqüências brechas do sistema capitalista global. Pode acontecer de novo.

Em 2001, os EUA sofreram dois grandes golpes: o ataque terrorista ao World Trade Center e ao Pentágono, e a revelação da maior fraude corporativa da história, que teve a Enron como protagonista. Sobre esse último episódio, já está disponível em DVD o documentário “Enron: Os mais espertos da sala” (Enron: the smartest guys in the room), um filme indispensável para quem quiser entender um pouco sobre o que aconteceu com a corporação. Não se tratou de um caso isolado de ganância e falcatrua. O filme escrito e dirigido por Alex Gibney mostra a rede de cumplicidade que possibilitou à empresa praticar as fraudes contábeis que praticou. Rede de cumplicidade esta que envolveu grandes bancos, empresas de contabilidade, de advocacia e grande parte da mídia. Além dos desvios legais e morais, o que os executivos da empresa fizeram foi aproveitar e levar às últimas conseqüências algumas brechas abertas pelo capitalismo financeiro globalizado.

Entre outras revelações, o documentário mostra o ataque promovido por funcionários da Enron contra o governo da Califórnia, durante a gestão do democrata Gray Davis. Após praticar um poderoso lobby para aprovar a desregulamentação do setor de energia do Estado, os executivos da Enron aproveitaram-se do novo modelo para provocar apagões no sistema energético da Califórnia, aumentando brutalmente o preço da energia e causando um prejuízo de milhões de dólares aos cofres públicos. Desgastado politicamente pela crise de abastecimento, o governador Gray Davis acabou sendo derrotado pelo ator republicano Arnold “Exterminador” Schwarzenegger, que contou com o apoio da Enron em sua campanha. A sordidez política da atuação da empresa e suas ligações promíscuas com o governo de George W. Bush são apresentadas no filme com fartura de dados e testemunhos.

Mas o mais importante é conhecer as idéias dos executivos da empresa, que mesclavam um idealismo fundamentalista sobre a possibilidade de transformar idéias e expectativas de sucesso em lucros existentes apenas em balanços forjados. Eles realmente acreditavam que, ao se ter uma grande idéia sobre um novo produto, era lícito incluir na contabilidade a expectativa de lucros futuros com a sua comercialização. O problema é quando essas grandes idéias não saíam do papel ou fracassavam no teste de realidade. O que havia sido projetado como lucro nos balanços transformou-se em prejuízos de milhões de dólares. O saldo dessas operações foi trágico para milhares de funcionários que perderam tudo o que haviam aplicado em fundos de poupança e aposentadoria da empresa. Ao final do filme, uma ex-executiva da empresa adverte: não foi à toa que aconteceu o que aconteceu; e pode acontecer de novo com outras empresas.

Condenações individuais e culpas globais
Considerando o impacto devastador que a fraude teve na vida de milhares de funcionários e investidores da empresa, as sentenças judiciais estão sendo brandas com alguns dos principais envolvidos. No dia 17 de novembro deste ano, as autoridades judiciais dos EUA condenaram à prisão dois ex-executivos da empresa. Em um tribunal de Houston, Texas, o juiz Ewing Werlein condenou a pouco mais de três anos de prisão Michael Kopper, principal assessor do ex-diretor financeiro da Enron, Andrew Fastow, responsável pelas “maquiagens” contábeis que inventaram lucros inexistentes. Segundo o argumento da promotoria, de maio de 1997 a setembro de 2001, Kooper aproveitou-se destes truques de maquiagem para desviar milhões de dólares para sua conta particular, para as contas de Fastow e de outros ex-altos executivos da Enron, com plena consciência de que isso prejudicaria fortemente a saúde financeira da empresa e de seus acionistas.

O outro condenado foi Mark Koenig, ex-diretor de serviços ao investidor da Enron, sentenciado a 18 meses de prisão por ter contribuído com a elaboração de relatórios financeiros falsos, com a permissão de seus superiores, com o objetivo de ocultar a verdadeira situação financeira da corporação. Os dois ex-executivos da Enron tiveram sentenças menores do que se esperava em função de terem colaborado com a promotoria. Kopper devolveu cerca de US$ 12 milhões desviados de forma ilícita. Koenig declarou-se culpado, em agosto de 2004, de ter participado na construção da fraude. Ambos prestaram testemunhos contra outros executivos da Enron. Já o ex-contador da empresa, Richard Causey, foi condenado a cinco anos e meio de prisão por ter aprovado a contabilidade falsa que levou a empresa à falência em 2001. Também foi beneficiado com um acordo que evitou que ele fosse condenado a uma pensa de mais de 20 anos de prisão.

Causey assumiu a culpa pela fraude em dezembro de 2005, semanas antes de ir a julgamento juntamente com fundador da Enron, Ken Lay, e com o diretor executivo Jeff Skilling, ambos considerados culpados em maio. Lay acabou “escapando” da prisão, pois morreu vítima de um ataque cardíaco no dia 5 de julho. Ele e Jeff Skilling são personagens centrais do filme de Alex Gibney. Skilling acabou sofrendo a pena mais dura, sendo condenado a 24 anos e três meses de prisão pelo papel que desempenhou na fraude. Segundo o juiz Sim Lake, que sentenciou Skilling, as provas mostraram que o ex-executivo mentiu repetida e sistematicamente aos investidores e funcionários da empresa. Ele foi o último alto executivo da empresa a ser condenado pelo escândalo contábil que transformou em pó mais de US$ 60 bilhões em ações da empresa e mais de US$ 2 bilhões que compunham os fundos de pensão dos funcionários.

Criminalização do globo e globalização do crime
As condenações individuais de alguns dos principais envolvidos no escândalo não atingem, porém, a rede de colaboradores ativos ou passivos pertencentes a grandes bancos, empresas de auditoria e à imprensa especializada no sistema financeiro que durante muitos anos incensou a Enron como modelo de um novo tipo de empresa, uma empresa ousada e inovadora que deveria servir de exemplo a todo o mundo. Elas não penalizaram tampouco as conseqüências políticas da atuação da Enron, como a que ocorreu na Califórnia e que acabou ajudando a levar o “Exterminador do futuro” ao poder. O documentário sobre o caso ilustra uma reflexão do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, em seu livro “Vidas desperdiçadas” (Wasted Lives, 2004), publicado no Brasil pela Jorge Zahar, sobre a face sombria do atua estágio do capitalismo financeiro. Uma face caracterizada, entre outras coisas, por relações promíscuas com o crime organizado.

Ao tratar do que chama de “refugo da globalização”, Bauman afirma: “Uma conseqüência bastante espetacular e potencialmente sinistra dos erráticos processos globalizantes, descontrolados e descomedidos como têm sido até hoje é a progressiva criminalização do globo e globalização do crime. Parte considerável dos bilhões de dólares, libras e euros que todo dia mudam de mão provém de fontes criminosas e se destinam a fontes criminosas. Todos os outros – parceiros e jogadores menores – não têm opção a não ser bajular os poderosos. Na melhor das hipóteses, o sistema jurídico global é constituído de patronos e dependentes, e hoje apresenta (de fato, se não na teoria) uma colcha de retalhos de privilégios e privações. São os jogadores mais poderosos que distribuem, de maneira esparsa, e de olho na preservação de seu monopólio, o direito de buscar a proteção da lei”.

Não se trata apenas, prossegue o sociólogo, do fato de que as máfias globais operam aproveitando-se de brechas nas estruturas jurídicas e institucionais. O importante, destaca, “é que, uma vez libertas de restrições legais e efetivas e dependendo unicamente do diferencial de poder em vigor, todas as operações no espaço global seguem (segundo o planejado ou por falha) o padrão até aqui associado às máfias, ou à corrupção das normas da lei ao estilo mafioso”. A história do colapso da Enron fornece fartos exemplos de como isso funciona.

É particularmente marcante a história da desregulamentação do setor energético na Califórnia, em 2006, a defesa fundamentalista que Ronald Reagan faz do livre mercado (só há “salvação” aí, segundo ele) e o modo como operadores da empresa atuaram para provocar apagões no Estado e aumentar assim seus lucros com a elevação do preço da energia para a população. Os vínculos políticos dessa operação com o Partido Republicano ficam escancarados em uma cena onde, durante a campanha eleitoral, Arnold Schwarznegger, chama o governador democrata Gray Davis de “exterminador do futuro”. O que estava sendo exterminado, na verdade, eram fundos de poupança e de aposentadoria, a soberania de uma unidade federada e, principalmente, a confiança em um modelo que prometia o paraíso e entregou o inferno na porta de milhares de funcionários e investidores.

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3401